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2012: o ano em Demências

(“2012: the year in dementia”)

Gandy S, Dekosky ST

Lancet Neurol. 2013 Jan;12(1):4-6

Abstract: Não há.

Comentário: A cada mês de dezembro, a Lancet Neurology tradicionalmente lança artigos revisando os principais avanços em cada uma das subáreas no ano. Os autores responsáveis pela parte de Demência nos lembram de vários trabalhos importantes nesta área, principalmente no que diz respeito à doença de Alzheimer (DA). O principal achado do ano foi uma mutação no gene da proteína precursora da amiloide (APP), A673T, que torna esta proteína mais resistente aos efeitos da ß-secretase (segundo a hipótese da cascata amiloide, a clivagem anormal da APP pela ß-secretase é que gera a proteína patológica ß-amiloide). Além disso, foi visto que, mesmo se o indivíduo for homozigoto para ApoE ε4 (um conhecido fator de risco para DA), a mutação A673T lhe confere proteção. Em miúdos: os humanos que têm esta mutação são virtualmente imunes à DA. Estes achados confirmam a existência da fisiopatologia e neurotoxicidade da ß-amiloide e geram arcabouço teórico para possíveis terapias gênicas no futuro (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22801501).

Outro achado interessante no campo da genética foi a descoberta de uma proteína associada com DA, a TREM2. Esta molécula tem a função de promover a fagocitose microglial da ß-amiloide, e mutações em seu gene alterariam esta função fagocítica. Junto com outros achados relacionados com interleucinas, estes resultados impulsionam as pesquisas que investigam tratamentos baseados em imunomodulação ou terapias anti-inflamatórias na DA (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23150934). A propósito, este ano vimos 2 estudos clínicos com anticorpos monoclonais para tratamento de DA terem desfechos negativos, tanto com bapinezumab quanto solanezumab. Também 2 grandes coortes de indivíduos em risco de DA familiar foram iniciadas, e futuros dados sobre biomarcadores super-precoces podem nos ajudar no campo da prevenção.

Este ano, por incentivo do governo norte-americano, muitos artigos e revisões sobre encefalopatia traumática crônica foram publicados, em grande parte pelos crescentes índices de traumas em conflitos armados, esportes de alto impacto e acidentes de trânsito. Já no campo da pesquisa básica, uma hipótese sugerida por Braak nos últimos 15 anos vem ganhando força: modelos experimentais comprovaram a transmissão transsináptica de agregados proteicos anormais intracellares (tau e sinucleína), sugerindo que as doenças neurodegenerativas podem ter um caráter “infeccioso”, semelhante à propagação priônica. Sem dúvidas, isto seria uma descoberta avassaladora no campo da Neurodegeneração (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22365544; http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23161999).

Link: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23237888

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Efeitos de adversidades no início da vida sobre o declínio cognitivo em idosos afro-americanos e brancos

(“Effects of early-life adversity on cognitive decline in older African Americans and whites”)

Barnes LL, Wilson RS, Everson-Rose SA, Hayward MD, Evans DA, Mendes de Leon CF

Neurology. 2012 Dec 11;79(24):2321-2327

Abstract: Objetivos: Adversidade no início da vida está relacionada à saúde do adulto na velhice, mas pouco se sabe sobre sua relação com declínio cognitivo. Métodos: Foram incluídos mais de 6100 moradores idosos (média de idade 74,9 anos; 61,8% de afro-americanos) envolvidos no “Chicago Health and Aging Project”, um estudo populacional e definido geograficamente de fatores de risco para doença de Alzheimer. Os participantes foram entrevistados em intervalos de aproximadamente 3 anos, por até 16 anos. A entrevista incluiu uma avaliação inicial das adversidades no início da vida, e a administração de 4 testes curtos de função cognitiva para se avaliar mudanças na função cognitiva. Nós estimamos a relação de adversidades no início da vida com a taxa de declínio cognitivo em séries de modelos de efeitos mistos. Resultados: Em modelos estratificados pela raça, e ajustados para idade e sexo, a adversidade no início da vida foi relacionada com declínio cognitivo em afro-americanos e brancos de modo diferente. Enquanto que nenhuma medida de adversidade no início da vida se relacionou com o declínio cognitivo em brancos, tanto privação de alimento quanto ser mais magro que a média das pessoas na infância esteve associada a uma taxa mais lenta de declínio cognitivo em afro-americanos. As relações não se associaram com os anos de educação e persistiram após ajuste para fatores cardiovasculares. Conclusão: Os marcadores de adversidade no início da vida tiveram um inesperado efeito protetor sobre o declínio cognitivo em afro-americanos.

Comentário: Este interessante estudo se baseou na conhecida relação entre o efeito de estados de calamidade humanitária (guerras, desastres naturais, fome etc) sobre crianças e aumento do risco de doenças cardiovasculares e mortalidade no futuro, para tentar estimar se tais adversidades no início da vida poderiam influenciar no declínio cognitivo na velhice, e consequentemente na conversão para DA. Os autores utilizaram o contexto histórico-social de indivíduos afro-americanos que sofreram os anos mais brutais de segregação racial nos EUA (primeiras décadas do século XX) para avaliar o efeito de tal miséria em longo prazo, entrevistando mais de 6000 idosos, e seguindo-os por até 16 anos, com avaliações cognitivas de 3 em 3 anos. Para comparação com os afro-americanos, foram usados idosos caucasianos. Porém, o resultado do estudo foi bem diferente do esperado: foi visto que os afro-americanos com mais adversidades na infância (principalmente relato de ter passado fome e ser mais magro que a maioria das crianças na época) tiveram um declínio cognitivo mais lento que os idosos caucasianos, mesmo com ajuste de escolaridade e fatores cardiovasculares. Metodologicamente, o estudo tem suas limitações: é um estudo retrospectivo, que baseia seus parâmetros em uma entrevista de poucas perguntas, sobre eventos que aconteceram há mais de 40 anos. Também é importante ressaltar que não se acredita que haja um efeito “racial” sobre o resultado: ele apenas indicaria que estas pessoas afro-americanas tiveram vidas muito difíceis na infância. Creio que um estudo médico-antropológico desta monta seria muito interessante de ser feito no Brasil, onde tivemos efeitos diretos do regime escravista em uma geração que viveu até meados do século passado.

Link: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23233682

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Além do fascículo arqueado: consenso e controvérsia na anatomia das conexões da linguagem

(“Beyond the arcuate fasciculus: consensus and controversy in the connectional anatomy of language”)

Dick AS, Tremblay P

Brain. 2012 Dec;135(Pt 12):3529-50

Abstract: O crescente consenso de que a linguagem esteja distribuída em redes corticais e subcorticais de larga escala trouxe consigo um foco sobre a anatomia das conexões da linguagem, ou como vias particulares de fibras conectam regiões com a rede de linguagem. Compreender a conectividade da rede de linguagem poderia fornecer vislumbres críticos a respeito da função, mas investigações recentes usando várias metodologias tanto em humanos quanto em primatas não-humanos geraram padrões de vias conflitantes fundamentais para a linguagem. Algumas destas vias classicamente consideradas como associadas à linguagem, como o fascículo arqueado, sofrem o questionamento de serem mais conexões de domínio geral que especializadas, o que representa uma mudança radical nesta perspectiva. Outras vias descritas em primatas não-humanos ainda precisam ser confirmadas em humanos. Nesta revisão, nós examinamos o consenso e a controvérsia nos estudos de conectividade de projeções da linguagem. Nós focamos em sete vias de feixes – o fascículo longitudinal superior e fascículo arqueado, o fascículo uncinado, a cápsula extrema, o fascículo longitudinal médio, o fascículo longitudinal inferior e o fascículo fronto-occipital inferior – que têm sido propostos para embasar a linguagem em humanos. Nós examinamos os métodos, em humanos e em primatas não-humanos, que foram usados para se investigar a conectividade destas vias, o contexto histórico que levou à compreensão atual de suas anatomias, e os correlatos funcionais e clínicos de cada via referente à linguagem. Nós concluímos com um desafio aos pesquisadores e clínicos para estabelecerem um quadro coerente, no qual a conectividade das vias de feixes possa ser sistematicamente incorporada ao estudo de linguagem.

Comentário: As bases neurobiológicas da linguagem foram estabelecidas por grandes pioneiros, hoje bastante conhecidos pelos neurologistas, como Karl Wernicke e Paul Broca, no fim do século XIX. O modelo criado, principalmente pelo primeiro, mostrou que áreas corticais especializadas no hemisfério esquerdo (lobo frontal inferior e lobo temporal posterior) eram conectadas por uma via expressa, o fascículo arqueado, integrando compreensão e expressão, numa fantástica harmonia. O problema é que este modelo tem mais de 100 anos, e cada vez mais evidências mostram que é extremamente simplista e obsoleto. Este ótimo artigo da Brain faz uma extensa revisão da literatura desta área, mostrando as controvérsias surgidas recentemente pelos novos achados de técnicas como DTI e sua tractografia. Em resumo, o modelo mais aceito atualmente é que existem dois sistemas paralelos de linguagem: um relacionado à execução da linguagem, sua articulação/expressão (sistema dorsal) e outro com a compreensão e entendimento/semântica das mensagens (sistema ventral). O clássico modelo área de Wernicke-arqueado-área de Broca seria uma parte apenas do sistema dorsal. Mesmo sendo um texto longo, creio que todo neurologista com alguma preocupação por neurofisiologia, semiologia e topografia deveria ler este artigo, pois ele mostra que nossa concepção geral a respeito de linguagem, de nossos livros-texto clássicos (vide “O Exame Neurológico”, de DeJong), está bastante antiquada.

Link: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23107648